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Conhecido nas redes sociais como Preto Gourmet, Breno Cruz tem um papel fundamental na luta para que pessoas pretas sejam reconhecidas pelo seu trabalho no ramo gastronômico, ainda muito permeado pelo racismo estrutural. Em entrevista ao podcast O Café e a Conta, ele fala sobre a importância de se abrir para que haja mais inclusão

Prêmio Gastronomia Preta foi realizado em novembro, no Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira, o MUHCAB, no RJ. Foto: Divulgação

Professor no curso de Gastronomia da UFRJ, Breno Cruz é responsável por diversos programas de impacto social atrelados à área, como o projeto de extensão TransGarçonne, além de seu trabalho na mídia, em que é conhecido como Preto Gourmet. Pesquisador dedicado à gastronomia, gestão e consumo, tem nove livros publicados e, atualmente, tem trabalhado no décimo.

Sua ação por meio do instagram tem tido destaque diante do cenário da gastronomia brasileira, em que levanta a bandeira pelo reconhecimento dos negros atuantes no setor, que sofrem com a invisibilização.

Esse trabalho deu origem ao Prêmio Gastronomia Preta, que este ano acontece no dia 28 de novembro, no Museu de História e Cultura Afro-brasileira, no Rio de Janeiro, e vai premiar 21 profissionais pretos, pardos ou indígenas da gastronomia.

Breno, não tem como a primeira pergunta não ser a mais importante, talvez: qual é o papel do preto na construção da gastronomia brasileira?

Um primeiro exemplo que posso usar para refletir sobre a construção da gastronomia à luz do povo preto no Brasil, seria trazer um pouco para bebidas, como a cachaça. Setembro foi o Dia Nacional da Cachaça, dia 13. Quando analisamos a perspectiva histórica dela, percebemos que inicialmente foi um erro.

O povo preto, lá nas senzalas, entendeu que aquilo era uma bebida boa e possível. Durante anos, ela foi proibida. Até que, em 13 de setembro de 1671, aconteceu a liberação da cachaça, na perspectiva especificamente da bebida. Mas quando analisamos a questão da feijoada, por exemplo, surge dentro das senzalas como uma forma, na verdade, de fazer o que era possível com o que se tinha. Isso também é gastronomia.

E talvez hoje é o prato que representa a culinária brasileira. Seja a feijoada, ou o bolinho de feijoada, que é uma criação da chef Kátia Barbosa no Rio de Janeiro, a gastronomia é feita pelo povo preto há muito tempo. Mas quando tentamos compreendê-la de uma forma geral e analisamos a perspectiva dos empreendedores, vemos que ela ainda é embranquecida.

Isso tem uma justificativa na perspectiva, por exemplo, dos restaurantes de luxo ou da alta gastronomia. Quem teve possibilidade de viajar para fora do país foram pessoas que possivelmente não eram negras. Estamos falando das décadas de 70, 80 e 90.

Essas experiências fora do Brasil contribuíram, de certa maneira, para que essas pessoas chegassem aqui e apresentassem essa gastronomia focada na ideia da culinária francesa, que é uma alta gastronomia de fato.

E a partir do momento que essas pessoas têm a possibilidade de ter essa experiência fora do Brasil, ou que vão para estudar uma outra área de conhecimento e acabam descobrindo a gastronomia, trazem de volta essas referências da culinária francesa. E eu vejo muito a gastronomia como um fator de distinção social, principalmente por meio do status.

Por que a gastronomia hoje está tão presente nas redes sociais? Quando você olha o perfil de alguém e verifica, por exemplo, que a pessoa está postando um drink ou uma comida, isso, de fato, é também uma forma de fazer com que a distinção social aconteça por meio do status.

Não é todo mundo que tem dinheiro para ir a um bom restaurante e ter aquela experiência. Mas a gastronomia, quando analisamos uma perspectiva prática, inclusive de como ela acontece, muitas vezes é feita pelas pessoas pretas. É quem fica na cozinha e no salão, mas muitas vezes quem está em evidência é a pessoa branca, e não tem problema ela estar em evidência.

A minha proposta é justamente mostrar que as pessoas pretas existem na gastronomia. Elas fazem a gastronomia acontecer e precisam ser visibilizadas também. Eu fiz uma pesquisa não científica (a gente que é pesquisador tem a questão do rigor metodológico) e olhei todos os restaurantes que estão no Guia Michelin aqui no Rio de Janeiro. Procurei pelos chefs e, de quarenta e três, apenas um era preto, que por acaso é a Katia Barbosa.

Sempre tem alguém que pode questionar se ela é preta, talvez por não ser uma negra retinta, vamos dizer assim. E tem um outro profissional que eu descobri, contatando as pessoas aqui no Rio de Janeiro. Um chef de cozinha que, curiosamente, não está em nenhuma foto do Instagram desse restaurante que está no Guia Michelin.

Sendo que no Instagram, muitas vezes, as pessoas usam a figura do chef para personificar também aquela experiência. Então é muito curioso e eu vejo que, de certa forma, somos sim invisibilizados. A proposta do Preto Gourmet, e principalmente do Prêmio Gastronomia Preta, é deixar claro que precisamos olhar para as pessoas pretas na gastronomia e começar a evidenciá-las.

Queria que você explicasse um pouco mais sobre isso, até para darmos holofote a essa iniciativa, mas me corrija se eu estiver errado: esse alicerce já está construído, a gastronomia brasileira está fundada, mas ainda falta o que podemos chamar de reconhecimento, é mais ou menos por aí?

É isso. Quando analisamos as revistas sobre gastronomia, os conteúdos relacionados, raramente vemos uma pessoa preta sendo exposta ali como chef, como subchef, como bartender e como mixologista. Então, eu vejo sim que essa invisibilidade é uma realidade, infelizmente, na gastronomia no Brasil.

Estamos chegando ao episódio número 23 do nosso podcast, mas tivemos teve a honra de inaugurá-lo com o chef João Diamante, que é do Rio de Janeiro e que tem um projeto social muito importante, o Diamantes na Cozinha. O João falou muito sobre essa questão da não marginalização, dele não entrar somente nessa questão das cotas, no sentido de um espaço que deveria somente falar de como é ser um negro na cozinha, porque isso o reduziria enquanto chef. Eu queria que você falasse um pouco mais sobre isso.

Qual é o papel desse diálogo, de galgar mais caminhos, de aparecer em mais pontos? E entrando também na questão do Prêmio, como ele abrange as várias áreas da gastronomia, que são importantes para termos essa visibilidade.

Semana passada eu entrei em aula, eu dou aula no primeiro e segundo períodos de gastronomia. Uma disciplina que leciono é Extensão Universitária. Então eu tenho a possibilidade de abordar algumas questões raciais de maneira tangencial, no decorrer da disciplina. E eu perguntei para os alunos: quantos chefs pretos ou pretas vocês conhecem?

Na universidade, quando você faz uma pergunta, em três segundos você já tem uma resposta. Demoraram uns vinte segundos para alguém falar "eu conheço aquela, professor, da TV". Comecei a falar alguns nomes. “Essa aí, Kátia Barbosa”. Eu falei: mais alguém? Não, ninguém tinha nenhuma. Vocês não conhecem o João Diamante, a Andressa Cabral, a dona Carmem Virgínia, o Vladimir Reis, que não está na mídia, mas que faz um trabalho super legal?

Ninguém conhecia. Então, a partir dessa experiência, conseguimos compreender de fato como estamos invisibilizados. E eu continuo batendo nessa tecla da invisibilização, porque ela realmente acontece. Mas é importante pensar que a gastronomia não é simplesmente feita com o chef, que é o maior cargo dentro da cozinha e que tem uma posição de liderança e, muitas vezes, de criação.

Existem outros cargos na gastronomia e outras posições que não são visibilizadas. Por exemplo, o de cumim, que é o ajudante do garçom. Tem uma questão de gênero também, que precisamos considerar. A gastronomia é muito machista. Quantas chefs no Brasil estão à frente de restaurantes no Guia Michelin?

Ok, alguém poderia falar que não foi compreendido ainda, mas as mulheres que estão dentro da cozinha, como cozinheiras ou como chefs, são constantemente desrespeitadas. Então, além do racismo, que é uma coisa que faz parte da nossa sociedade e que vemos muito na gastronomia, tem a questão do machismo, de achar que mulher não pode segurar peso ou então de não respeitá-la em função dela ser uma chef.

Então, quando a gente tem a categoria de garçonete, é para mostrar que a mulher também faz parte desse processo enquanto pessoa e enquanto profissional dentro da gastronomia. É importante compreender que a gastronomia não é simplesmente sobre cozinhar.

Tem uma fala muito interessante da Afrodite, que é uma garçonete trans. Ela chegou uma vez e me falou, “Breno, gastronomia não é simplesmente sobre cozinhar, sobre o alimento, é sobre pessoas”. A ideia do Prêmio é justamente evidenciar as pessoas a partir das suas histórias. E eu não estou preocupado se a pessoa teve a melhor formação.

É isso que eu falo para o júri técnico. Eu não estou preocupado com o fato da pessoa ter tido uma formação fora do país ou com o nível das técnicas. Eu estou preocupado com a história daquela pessoa, de onde ela saiu, o que ela passou, onde ela chegou e como ela também é agente multiplicador daquilo que ela faz.

Então isso é muito importante. Muitas pessoas não sabem que o melhor sommelier do Brasil na atualidade é um homem preto, que é o Renato Neves. Ele vai representar o Brasil ano que vem no Mundial de Sommeliers, na França. Mas muita gente não conhece, não sabe, ou fala nossa, que legal, ele é preto! Mas esse tipo reduz a posição de preto e muitas vezes fala “olha que legal, tem um sommelier preto”, mas não conhece a história por trás.

Então o Gastronomia Preta é sobre as histórias de vida dessas pessoas, porque a gente que é preto, num país racista como o nosso, a gente sofre. E isso aconteceu comigo aqui no Rio de Janeiro, inclusive, em um restaurante que eu cheguei. Fui fazer uma pergunta para o segurança, e eu estava de bermuda. Aqui no Rio de Janeiro é super comum você sair da praia e ir para o shopping, ir para o restaurante.

Quando eu fiz a pergunta, ele me fuzilou com os olhos, como se eu estivesse fazendo alguma coisa errada só por perguntar, e eu dei bom dia com um sorriso no rosto. Nós mineiros, somos simpáticos. Ali eu entendi que não era sobre qualquer outra situação, era sobre como ele me via como pessoa preta, de short, que ele imaginou que não teria poder aquisitivo para chegar em um restaurante daquele e consumir.

Então, o racismo se apresenta na gastronomia de várias formas, seja nessa forma de tratar o cliente, seja na forma de você, enquanto empresa, ter um funcionário que se destaca. Já escutei de muitos chefs que os clientes se assustam quando descobrem que é um chef preto.

E isso é muito cruel, é um soco no estômago. Ou então a gerente da casa que é negra. Eu já ouvi de uma consultora super reconhecida no cenário gastronômico do Rio de Janeiro, que os clientes quase pulam da cadeira quando pedem para conversar com o gerente ou com o responsável da casa e chega uma mulher preta de black power. “Não, eu queria falar com o gerente”, não a reconhecem como gerente da casa. Então, infelizmente, isso é uma realidade.

Você falou muito sobre isso, que a formação humana vai na frente de tudo. É muito triste quando vemos a competência de uma pessoa ser negada por uma questão racial. Hoje, de acordo com a Abrasel, são mais de 1,2 milhão de bares e restaurantes em todo o Brasil, sendo que muitos desses estabelecimentos são de micro e pequenos negócios.

O setor se mostra apoiador da diversidade, 63% das vagas são ocupadas por mulheres. Outro ponto que merece destaque é que os negros e pardos representam 40,7% da força de trabalho formal. Os informais, no nosso setor, são 65%.

Ou seja, é um setor que ainda sofre um pouco para se manter em pé, para ter uma musculatura, porque, como você falou, existe essa tendência de achar que se trata de alta gastronomia e na verdade é muito o contrário.

Muitos empresários são microempreendedores individuais. Eles não são o Tio Patinhas, que está nadando em dinheiro. É muito legal quando vemos, por exemplo, uma chefe como a Andressa Cabral, com o Meza Bar no Rio de Janeiro, onde a influência dela, do ser negro, permeia todo o ambiente e permeia os pratos, a decoração. Permeia tudo.

Temos que parar para entender que a gastronomia no Brasil, com essa influência da cultura africana, ela existe. Isso é um fato. Você tem algumas casas aqui do Rio de Janeiro, como o Meza Bar, como você citou, e o Dida Bar. Salvador também. Obviamente, é a capital mais preta do Brasil, e eu sempre prefiro falar o preto do que negro.

Por quê?

Porque essa ficha caiu para mim uma vez em que eu fui na delegacia, quando me roubaram no carnaval. O escrivão me perguntou assim: “você é branco, amarelo ou preto? ” Vamos lá, branco eu não sou, amarelo também não, eu sou preto. Só que esse processo de me entender como preto não é um processo de muito tempo atrás.

É um processo recente de três anos pra cá, porque eu me entendi como preto há três anos. Antes disso, eu era o que se chamava em Minas Gerais de “moreno jambo”. Então eu não me vejo como uma pessoa parda. Eu me vejo uma pessoa preta. E acho que temos que olhar para essa questão da pretitude de uma maneira orgulhosa também.

E foi esse o meu processo, em função de eu ter sofrido racismo na escola aos 15 anos de idade, de apanhar sem saber porquê (acho que nem minha família sabe disso, ficou sabendo agora). Aliás, não foi nem com 15, foi com 11 anos que um menino resolveu me bater. E eu nunca fui de briga.

Assim como na universidade, eu não entendia como as pessoas me olhavam, ou no mestrado, quando falaram para mim que eu não poderia gostar de axé music. E como assim, gente? Eu cresci ouvindo axé music. Agora eu estou no mestrado na FGV e não posso mais gostar? “Porque você vai ser um mestre pela FGV. ” Eu posso ser mestre, mas antes disso eu sou o Breno.

É como se você nunca fosse bom o suficiente.

A minha vida inteira, eu sempre tive que provar que eu era bom para as coisas que eu fazia. E não bastava ser igual, eu tinha que ser um pouco melhor para ser reconhecido como igual aos outros. Isso é uma realidade, infelizmente, do povo preto no Brasil.

Também tem uma questão geracional. Eu tenho 40 anos e a minha geração é diferente, talvez, da geração dos 20, dos 30, porque em função das cotas nas universidades, as pessoas pretas e pardas começaram a adentrar a universidade pública, especificamente. E eu vejo muito isso como professor, porque dou aula na federal desde 2010. Então já são 12 anos como professor do ensino superior público. A universidade empreteceu e isso é muito legal.

E hoje, no mercado de trabalho, você vê que de fato, tem pessoas que não são brancas, como era no passado, nas posições mais elevadas. Então eu olho para o termo preto e me agrada muito. Mas não sou militante na perspectiva teórica, de ficar discutindo questões epistemológicas, talvez, dos termos. A minha militância se dá no trabalho, na forma de tentar olhar para as pessoas e ao falar que precisamos mudar.

Eu sou muito mais da ação do que da reflexão. E é o que de fato eu tento fazer por meio do meu Instagram, contando as histórias das pessoas que não são vistas dentro da gastronomia. E agora também por meio do Prêmio Gastronomia Preta, que nunca imaginei que iria tomar essa proporção que tomou.

É esse processo de autoconhecimento. Imagino também que seja um processo de escada, degrau após degrau. Eu me lembro de uma frase do Mano Brown sobre se reconhecer como pessoa preta, porque o próprio nome diz Mano Brown. Ele falava “não sou preto retinto, mas eu também não sou branco”.

E uma vez ele contou que estava na escola conversando com os amigos, era época de Copa do Mundo, e ele falou que iria torcer pela Itália porque o seu avô era italiano. Todo mundo começou a rir dele com um tom jocoso, como se fosse uma chacota o menino negro e o avô italiano.

Como assim? Você não é “merecedor” de ter um avô italiano? E ele falou que isso foi o start para esse autoconhecimento. E é legal ver como o seu trabalho se reflete também em questões que a sociedade brasileira deve sim discutir.

Em relação ao Prêmio Gastronomia Preta, vejo que são várias categorias: chef e confeiteiro, subchef, auxiliar de cozinha, futuro chef, merendeira, melhor restaurante, melhor criação, sommelier, bartender, pesquisador, empreendedor, gestor, maitre, hostess, garçonete, garçom, fotógrafo, chef na mídia, personalidade, inclusão social. Eu vejo que existe uma preocupação de ser extremamente democrático, é isso mesmo?

Eu tentei abarcar, quando pensei o Prêmio, a maior quantidade possível de categorias. Como professor universitário, não teria como deixar o futuro chef. São estudantes de gastronomia que podem se destacar, e merendeira, porque eu vim de escola pública, e falamos muito na gastronomia, quando os alunos entram e quando saem também, da relação dela com o afeto.

E para muitas crianças pobres, o primeiro processo de alimentação fora de casa não é em restaurante, é na escola. Então, como não olhar uma merendeira e não entender que ela também compõe esse conceito de gastronomia? E eu, que sou educador, entendo a importância de se pensar na merendeira.

Também temos hosts. Temos empreendedor, porque é uma coisa você ser gestor e outra coisa é você empreender. E tem um caso muito interessante, que é do empreendedor Vladimir Reis. Ele é um chef preto e, durante a pandemia, enquanto todo mundo estava demitindo, ele estava contratando, porque abriu o Dim Sum Rio, que é focado na culinária asiática. Ele faz um trabalho maravilhoso e único aqui no Rio de Janeiro.

Mas onde está essa pessoa na mídia? Não está. Justamente em função dele ser preto. Teve o Rio Gastronomia agora e quantos chefes pretos estavam dando aula? Só o João Diamante, que inclusive é embaixador do Prêmio Gastronomia Preta. Então a proposta do Prêmio é justamente mostrar essa diversidade da gastronomia, evidenciando que ela não é só quem está ali comandando a cozinha.

Existem várias pessoas e cargos que fazem de fato o restaurante acontecer. Tem o caso da merendeira e também do estudante ou da estudante de gastronomia. E focamos também no atendimento, porque faz parte da experiência.

Eu pesquiso a questão da percepção, da qualidade do atendimento e do serviço gastronômico. Esse é um foco meu na gastronomia. Dentro desses livros e pesquisas que eu publico, tem o ponto da avaliação dos restaurantes, e é super curioso que a comida não é o que aparece em primeiro lugar, mas o atendimento.

Então, quando pensamos na gastronomia, pensamos numa experiência que é completa e que envolve principalmente pessoas. Por isso a questão do atendimento também entra nessas categorias, assim como a culinária.

Breno, o Prêmio é um símbolo de como esse desafio pode ser vencido. Mas, na sua opinião, quais são os outros desafios para o reconhecimento do preto na gastronomia? Para onde que você acha que o Brasil deve encarar seus problemas a curto, médio e longo prazo e qual é o cenário que você prevê para uma questão mais sustentável, para um cenário melhor para todo o mundo?

Se eu te responder isso, mereço o Prêmio Nobel. Esse movimento é muito importante e, inicialmente, eu não imaginava que ia ter tanta voz. Em 24 horas, foram mais de 420 compartilhamentos, e eu não acreditei nisso. O nosso povo quer ser visto, o nosso povo quer ser compreendido, o nosso povo tem muito a mostrar, mas ainda não está sendo mostrado pela mídia.

Eu acredito que estamos num processo, por isso eu falei da educação, por isso que eu falei da universidade empretecer, principalmente a universidade pública. Estamos no processo de pessoas pretas, pardas e indígenas também chegarem em alguns postos de liderança. E a partir do momento em que essas pessoas, assim como a comunidade LGBTQ+ também, quando chegam nesses postos, acabam trazendo outras pessoas.

Especificamente no que diz respeito à visibilidade, e eu vou fazer o recorte da mídia. Existem pessoas pretas estagiando ou assumindo cargos iniciais dentro de grandes veículos de comunicação. Então, eu acho que isso tende a crescer.

A gente tem, por exemplo, o site Mundo Negro, que é uma plataforma focada e direcionada para as notícias relacionadas às pessoas pretas, que faz um trabalho maravilhoso e, de uma certa maneira, planta a sementinha no que diz respeito à visibilidade e acaba pautando a grande mídia também no que diz respeito às questões raciais.

Eu acredito que o Prêmio Gastronomia Preta e a minha ação no Preto Gourmet de certa maneira ajudam a entender que é um processo de ruptura que temos que fazer. É começar os questionamentos, por que não tem tantos chefs em revistas como a Veja ou o caderno Ela, aqui do Rio de Janeiro? Por que essas pessoas não aparecem?

Será que elas não aparecem porque estão começando a carreira e não têm uma assessoria de imprensa que entenda a pauta? Porque é um trabalho feito por esse serviço de assessoria de imprensa, que vai fazer com que aquela informação chegue nos jornalistas e que venda de fato essa notícia. O que está por trás de tudo isso, dessa estrutura como um todo?

Acho que o primeiro momento agora é da ruptura, de chegar e dizer “vamos olhar para isso agora de maneira diferente”. Por que existem tantas pessoas que fazem um bom trabalho e que não são compreendidas ou que não são vistas pelo que fazem?

Uma questão que eu acho superimportante nessa percepção relacionada à questão racial é que toda vez que abro o meu Instagram, já que eu acompanho vários restaurantes, e tem aquelas collabs, as colaborações de influencers, eles são brancos. Eu nunca vi nenhum influencer preto comentando a experiência dele no restaurante, sendo convidado por uma agência de marketing ou pelo próprio restaurante.

Tanto que a minha estreia como colunista do Mundo Negro foi semana passada e o título do meu artigo era o seguinte: “A regra é clara: preto não é influencer! “ Isso reverberou de tal forma, tantas pessoas verificadas no instagram foram comentar falando que realmente, como influenciadores, eles não são chamados para essas ações. Então, de fato, isso existe.

A proposta é justamente que a gente comece a refletir sobre a importância de fazer essa ruptura e, principalmente, a grande imprensa começar a considerar as pessoas pretas que estão por aí e que fazem um trabalho maravilhoso. Existe a Aline Guedes, que participou do Mestre do Sabor, e que faz um trabalho maravilhoso.

Quem conhece Benê Ricardo? As pessoas não conhecem. Alguém conhece a Cidinha Santiago? Não conhecem também. São pessoas que estão há muito tempo pensando a gastronomia no Brasil, mas que ainda não foram reconhecidas, pelo menos na grande mídia, na sua importância.

Tudo bem, a Cidinha é reconhecida na mídia, assim como outros poucos chefs. Mas chegou a hora de questionar e fazer acontecer de uma maneira diferente, dando espaço para que as pessoas possam mostrar esse trabalho, que muitas vezes é um trabalho exemplar e muito bom, muito bonito de ser visto.

Breno, para quem quer te conhecer um pouco mais, conhecer o trabalho do Preto Gourmet, quais são os canais? Quais são os seus nove livros já publicados?

Os meus livros podem ser encontrados no site da editora CRV, oito deles. Vem o décimo agora e nele, que será lançado em novembro, tem um capítulo especificamente falando sobre a pretitude gastronômica, a partir da ideia de "pretagonismo" justamente para que essas pessoas possam ser vistas e que elas possam estar em um lugar de protagonismo. No Instagram, vocês me acham no @pretogourmet.

A partir outubro eu lançarei um canal no YouTube, que é o Preto Gourmet. Eu fui convidado pelo pelo Renato Neves, que é o melhor sommelier do Brasil, e ele falou, Breno, a Casa Camolese é sua, eu acho que você tem que fazer um podcast e trazer essas pessoas para conversarem sobre essas histórias de vida.

Então, se eu tenho algo a dizer é que devemos acreditar que é possível, sim. Eu lembro direitinho quando, há um mês e meio, dois, eu cheguei para uma amiga jornalista e contei que tive uma ideia mas achava que não daria tempo de fazer esse ano, porque é em novembro, e ela falou “claro que dá tempo, faz.”

E em um mês o negócio aconteceu e a coisa tomou um tamanho grandioso. Ano que vem o Prêmio será nacional. Agora ele é para o Rio de Janeiro, mas com menções honrosas para o Brasil inteiro de quem tiver uma história linda, porque é sobre pessoas. É sobre entender que essas pessoas têm histórias de vida lindas e que elas merecem ser evidenciadas de alguma maneira.

E, por fim, o meu grande sonho neste momento é fazer acontecer o livro Gastronomia Preta, contando as histórias dessas pessoas que estão lá no meu perfil e dos vencedores do Prêmio Gastronomia Preta. É um sonho que eu quero colocar em prática, se possível, esse ano. Mas a gente sabe que professor de universidade pública não tem financiamento, nesse momento que estamos vivendo.

Então, eu conto com a ajuda de parceiros que quiserem pensar a possibilidade de financiamento desse livro, contando essas histórias, que são histórias maravilhosas. E modéstia à parte, essas histórias são bem contadas. É essa a ideia, humanizar esse processo e essas pessoas na gastronomia.

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