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"O que vejo é Nova York enfrentando os mesmos problemas de todas as cidades brasileiras, os mesmos problemas de todos nós. O que se veem são quarteirões de lojas inteiramente fechadas,tanto as megastores quanto as pequenas lojas. Tudo fechado, até mais do que no Rio. Isso por que não há custo rescisório (de demissão dos funcionários). Então, quando houve a escalada da pandemia, fecharam. Ninguém aqui fica tentando fazer uma conta para achar um jeito de pagar os custos rescisórios, como acontece no Brasil, em que muitos dos empreendedores do comércio não conseguem pagar. Aqui, não. Fecha-se. E ainda assim recebem auxílio do governo"

Cristiana Beltrão é pesquisadora de gastronomia, membro do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro e do Enrich (um ‘think tank’ – ou ‘grupo de reflexão’ de inovação, da União Europeia), conselheira da Abrasel no Rio, articulista da Veja Rio. Em dezembro de 1998, Cristiana Beltrão fundou o Bazzar Food Group, que hoje compreende três restaurantes na cidade do Rio. A estrela-guia do grupo é o Bazzar Restaurante, na Rua Barão da Torre, em Ipanema.

As outras duas casas situam-se dentro das livrarias Travessa do Leblon e de Ipanema. Pelo fato de se localizarem no interior das livrarias, essas duas casas são conhecidas como cafés. Mas são igualmente restaurantes completos para almoço e jantar. Servem também o café da manhã.

Filha da arqueóloga Maria Coutinho Beltrão e do ministro Hélio Beltrão, falecido em outubro de 1997, aos 81 anos de idade, ela é irmã da jornalista e apresentadora da GloboNews, Maria Beltrão, e do engenheiro, administrador e economista Hélio Marcos Coutinho Beltrão, presidente do Instituto Mises Brasil.

Cristiana Beltrão de imediato atendeu o telefonema da B&R, na manhã de segunda-feira do dia 20 de setembro. O repórter foi logo informado que sua entrevistada não estava no Rio de Janeiro, mas em Nova York. A empresária e pesquisadora de alimentos conhece a Ilha de Manhattan desde a infância, quando viajava com a família.

Em dezembro de 1998, ela fundou o Bazzar Food Group. A partir de então, as viagens à cidade que nunca dorme ganharam certa frequência. Um olhar para Nova York, outro para o Rio. Este acabou sendo o ‘leitmotiv’, o motivo condutor da entrevista.

Como é que você está avaliando este período de declínio da pandemia?

Eu não sei se você sabe, mas estou em Nova York.

Não sabia. Simplesmente liguei imaginando que você que estivesse no Rio.

Estou em um fuso diferente (duas horas a menos, em relação ao horário de Brasília). Minha filha está fazendo o terceiro ano do ensino médio (high school) aqui, em um colégio interno. Então vim para cá, acompanhá-la na sua fase de adaptação.

Então, a propósito, como está este período de agora, depois do auge da pandemia, aí em Nova York, em relação ao Brasil?

A gente costuma imaginar que a situação aqui é sempre melhor do que a da gente. Em minha coluna da Veja Rio, até escrevi um texto, que saiu no início do mês, intitulado ‘A grama do vizinho’ (a transcrição do artigo na pág.).

Mas o que vejo é a Ilha de Manhattan enfrentando os mesmos problemas de todas as cidades brasileiras, os mesmos problemas de todos nós. O que se veem são quarteirões de lojas inteiramente fechadas, tanto as megastores quanto as pequenas lojas. Tudo fechado, até mais do que no Rio. Isso por que não há custo rescisório (de demissão dos funcionários). Então, quando houve a escalada da pandemia, fecharam.

Ninguém aqui fica tentando fazer uma conta para achar um jeito de pagar os custos rescisórios, como acontece no Brasil, em que muitos dos empreendedores do comércio não conseguem pagar. Aqui, não. Fecha-se. E ainda assim recebem auxílio do governo. Então, o cenário aqui parece ainda mais catastrófico do que o do Rio, por exemplo.

Quando muito, fica uma só megastore no Midtown (a região central da cidade com maior concentração de arranha-céus; é o coração de Nova York, situado bem no meio da ilha de Manhattan). Não tem mais aquela variedade. No mais, o comércio lojista só opera com as vendas e entregas virtuais.

"O comércio dos pequenos que a gente enxerga em Nova York, nesta pandemia, são os bares e restaurantes. Não tenho dúvida: o papel dos bares e restaurantes, desde o botequim, mesmo, que dá vida aos bairros, vai ser cada vez maior. Com o comércio eletrônico, o pequeno comércio não tem chance, a menos que estejam baseadas em alguma especialidade, tornando-se muito mais conceituais"

"O pequeno vai voltar ao Centro do Rio, o pequeno vai abrir ali seu pequeno negócio; é superimportante, porque assim nasceu e cresceu o Centro, que guarda o esqueleto da sua concepção. Nasceu e renascerá de uma forma orgânica e fluida, promovendo-se a habitação. Não se pode ter uma área só de visitação; senão, ela morre. E foi o que aconteceu em grande parte do Centro do Rio. Nele há museus e outras atrações, mas que recebem visitas ocasionais. O adequado é termos vida e moradias perto do museu. A livraria e o restaurante levam movimento a uma região. Isso é que funciona. Acho muito bonito esse projeto, e estou muito animada"

Este é o cenário de toda Manhattan?

Não. Onde há moradias, bares e restaurantes, existe o movimento. A vida em Nova York existe pelos bares e restaurantes. É uma coisa bonita de se ver. Os lugares que eu mais gosto de estar são aqueles em que há um mundão de bares e restaurantes que voltaram a abrir, as pessoas voltando a se encontrar.

Porque, o que se conclui, é que não existe essa coisa de passear pela rua vendo vitrines. E, além disso, as lojas estão todas trabalhando com o comércio eletrônico. Os bares e restaurantes tornam-se, cada vez mais, o espaço do reencontro, da humanidade, seja em Nova York ou no Rio de Janeiro.

Acho que essa coisa da vocação única vai acabar nas cidades. O que a gente vê por aqui, em Nova York, é que o pequeno comércio lojista também está mudando.

Hoje, as pessoas se sentem muito mais confortáveis com o comércio eletrônico. Ficarão as megastores. O comércio dos pequenos que a gente enxerga em Nova York, nesta pandemia, são os bares e restaurantes. Não tenho dúvida: o papel dos bares e restaurantes, desde o botequim, mesmo, que dá vida aos bairros, vai ser cada vez maior. Com o comércio eletrônico, o pequeno comércio não tem chance, a menos que estejam baseadas em alguma especialidade, tornando-se muito mais conceituais.

Quais as áreas de Nova York que mais sofreram com a pandemia?

Midtown, que ficou com uma vocação mais ou menos única, comercial e financeira. O Financial District sofreu ainda mais acentuadamente, porque os escritórios estão fechados. Por aqui, se vê, agora, quarteirões e mais quarteirões fechados. Tudo fechado.

O resto da cidade, que tem outras atividades e moradias, funciona melhor. Essa ultrapassada história de vocação única tem de ser revista. Isso definitivamente não vai mais funcionar no mundo pós-pandêmico. (No Financial District, Sul da ilha de Manhattan, localiza-se a Bolsa de Nova York.

É uma região dominada pelos edifícios de escritórios financeiros. Antes da pandemia, os escritórios funcionavam até às cinco da tarde, tornando a área desértica).

E, do lado brasileiro, como você vê o plano ‘Reviver Centro”?

Vejo com uma felicidade que você não faz ideia. É muito mais do que um projeto urbanístico. É claro que uma região da cidade com a importância histórica e arquitetônica do Centro do Rio merece uma preocupação urbanística. O projeto trata disso e muito mais.

É um projeto urbanístico, cultural, social e econômico. Com todos esses olhares, com esses prismas, o negócio vai para frente, mesmo. O Centro do Rio guarda o esqueleto de uma cidade que surgiu espontaneamente, que surgiu e cresceu de forma não planejada.

Cada um daqueles cantos cresceu organicamente, a partir de uma padaria, um bar, um teatro e, depois, um cinema, que ali surgiu. E pode renascer de uma forma também orgânica, com tudo isso e moradias.

O Rio guarda as lembranças do pequeno negócio, do lugar que já teve moradia, comércio, vida cultural. O pequeno vai voltar, o pequeno vai abrir ali seu pequeno negócio; é superimportante, porque assim nasceu e cresceu o Centro, que guarda o esqueleto da sua concepção.

Nasceu e renascerá de uma forma orgânica e fluida, promovendo-se a habitação. Não se pode ter uma área só de visitação; senão, ela morre. E foi o que aconteceu em grande parte do Centro do Rio.

Nele há museus e outras atrações, mas que recebem visitas ocasionais. O adequado é termos vida e moradias perto do museu. A livraria e o restaurante levam movimento a uma região. Isso é que funciona. Acho muito bonito esse projeto, e estou muito animada.

Acompanho e admiro o trabalho do Washington Fajardo (secretário municipal de Planejamento Urbano) já há muitos anos. O planejamento urbano do Centro do Rio está sendo feito de modo a se dar espaço para que os negócios e os serviços aconteçam livremente. O planejamento e organização não devem ser um engessamento.

"O Rio sintoniza-se com o mundo de hoje, que está mais real, menos fabricado. Temos de cada vez mais aprendermos com pessoas que são diferentes da gente. É isso que esse convívio cotidiano impulsiona ainda mais a nossa comunicação, integração e força criativa, em um ambiente de mais confiança mútua. Acho tudo isso superimportante. Quando a gente encurta as distâncias com as pessoas diferentes, estamos começando a contribuir para que se diminuam as desigualdades"

"Enquanto Midtown e o Financial District estão deprimidos, o SoHo está ativo. Tem moradia, uma pancada de bares e restaurantes, de galerias de artes, de pequeno comércio. Isso faz com que o SoHo mantenha aceso o veio criativo que faz de Nova York uma cidade viva. É o que acontecerá com o Centro do Rio"

O projeto foi aprovado pela Câmara Municipal em 23 de abril deste ano. Como está a velocidade de implantação?

Está no melhor ritmo, no que é realisticamente possível. Existe, primeiro, toda uma preparação que está sendo feita. No início, é lento. Mas as mudanças já começam a ficar visíveis. Há uma série de pequenas coisas fundamentais. Há a pavimentação. As pedrinhas portuguesas das calçadas estão sendo refeitas.

Em todos os jardins, estão sendo retiradas as grades. Uma das coisas que mais enfeiam a cidade é a quantidade de grades em torno dos jardins e dos prédios. Quando são retiradas, enxerga-se a arquitetura, que se livra daquela interferência horrorosa. Estão melhorando a iluminação pública e, portanto, a segurança.

É uma preparação para que o show aconteça. A gente vê os postes consertados, a grama replantada. Vem se realizando toda uma reorganização do mobiliário urbano.

Por exemplo, equalizam-se, em um só padrão, as lixeiras, porque em um lugar havia um tipo de recipiente, e, mais à frente, outro tipo. Os banquinhos das praças estão iguais em todos os cantos. Tudo começa a funcionar harmonicamente. Não haverá quem queira morar na região se você não pode levar a criança à praça e ela brincar no escorrega.

Há sinais evidentes de que a proposta do ‘Reviver Centro’ despertou interesse dos empresários do Rio?

O mercado imobiliário reagiu. E quando isso acontece é dado o sinal de que se tem um importantíssimo primeiro passo. O setor começou a enxergar a oportunidade de se investir no Centro, fazendo, por exemplo, o retrofit (a conversão de um edifício de escritórios, por exemplo, em prédio de apartamentos), transformando os lugares comerciais em residenciais. Pela quantidade de prédios vazios, de todos os tamanhos, vê-se que o Centro terá oportunidades de moradias para todos os bolsos, seja para a classe de rendas altas, médias e baixas.

E o Centro é totalmente equipado com tudo. Tem uma extensa infraestrutura de Saúde, que, inclusive, é responsável por grande parte do PIB do Estado. O Centro tem infraestrutura de mobilidade, de cultura e lazer, e, sobretudo, de Educação, que é a coisa mais importante do mundo. As atrações histórico-culturais do Centro são muitas. O Rio não é uma cidade de praia. É muito mais.

O que é, então?

O Rio é um programa completo para qualquer tipo de turista. Em primeiro lugar, tem um peso cultural importantíssimo, que a diferencia de todas as demais cidades de praias. É uma cidade cosmopolita.

Há até mesmo turismo nas favelas da Rocinha, do Vidigal, do Complexo do Alemão e do Morro Dona Marte. Houve casos historicamente muito distantes de remoção de moradores, como a da reurbanização início dos anos 1900.

As remoções aconteceram em várias outras cidades. Pegava-se todo aquele povo e se colocava em um território que a gente não enxerga, para se esconder o que era visto como feio. Mas, no Rio, as favelas estão aí. Nos convivemos com elas, e isso promove uma integração social muito importante. O Rio sintoniza-se com o mundo de hoje, que está mais real, menos fabricado.

Temos de cada vez mais aprendermos com pessoas que são diferentes da gente. É isso que esse convívio cotidiano impulsiona ainda mais a nossa comunicação, integração e força criativa, em um ambiente de mais confiança mútua. Acho tudo isso superimportante. Quando a gente encurta as distâncias com as pessoas diferentes, estamos começando a contribuir para que se diminuam as desigualdades.

Qual seria um exemplo desse gesto de aproximação?

Começa pelo flanelinha. Se você tem medo do flanelinha, se você acha que ele é um cara diferente, acaba se estabelecendo uma velada rivalidade de parte a parte. A minha prática é a de, habitualmente, cumprimentar o flanelinha. Trata-o pelo nome, já sei quem é a filha dele.

Acontece que, quando chove e estou indo em direção ao carro, ele me dá uma carona no guarda-chuva. Isso acaba melhorando o jeito de a gente viver. Conviver com os diferentes passa a ser uma atitude de todos os da nossa casa. Um exemplo. Meu filho gosta de jogar basquete.

Ele vai jogar basquete no Rocha (bairro que faz parte da região administrativa do Méir, na Zona Norte), que é um subúrbio distante, bem simples, um bairro em que teve muita gente empregada em indústrias que fecharam, e que se empobreceu muito.

E a moradia social no Centro?

É superimportante que o Centro se tornará uma alternativa muito viável para a população de menor renda, conforme já está no plano ‘Reviver Centro’, uma prioridade do secretário de Planejamento Urbano, Washington Fajardo, e do prefeito Eduardo Paes.

Estamos aí falando de moradias descentes, que foram planejadas e bem estruturadas, localizadas, como eu já disse, em uma região bem equipada com tudo. Muita gente deixará de, nos subúrbios, pegar quatro trens, que quebram aqui e ali, gastando-se duas horas para se chegar ao trabalho. Por que a Rocinha cresceu tanto? Todo mundo quer morar perto de onde trabalha.

Aí o Rio, a partir de sua região central, começa a se tornar referência, para o mundo inteiro, de uma cidade mesclada socioeconômica, livrando-se da amarra de um setor dominar toda uma área geográfica.

Esse paralelo entre o Rio e Nova York está fazendo muito bem à minha cabeça. Vejo, aqui, que o coração da cidade, que é Midtown, morreu, que o Financial District também morreu. A vocação única não funciona. Não funciona ser só comercial. Também não funciona ser só residencial. Tem que se misturar.

Como é a região do SoHo aí em Nova York.

Enquanto Midtown e o Financial District estão deprimidos, o SoHo está ativo. Tem moradia, uma pancada de bares e restaurantes, de galerias de artes, de pequeno comércio. Isso faz com que o SoHo mantenha aceso o veio criativo que faz de Nova York uma cidade viva. É o que acontecerá com o Centro do Rio.

É este o cenário do Rio para o pós-pandemia.

Participo das reuniões do Conselho da Cidade, e acompanho as prestações de contas. Com toda a crise da pandemia, o Rio fechou no azul o primeiro semestre de 2021. Em todo o governo anterior, as contas públicas ficaram no vermelho.

Aí, você pode dizer: ‘Ôpa, algo certo está acontecendo’. Ainda entrará o dinheiro da privatização dos serviços de saneamento básico, realizado pela Cedae, que permitirá a realização de uma série de outras obras, ainda no mandato do Paes. Estou muito encantada e muito esperançosa com esse cenário de transformação.

O que os cariocas podem fazer agora, enquanto a Covid ainda não deixou de ser inteiramente ameaçadora?

A cidade pode usar mais o Centro, adotando as medidas de proteção já de amplo conhecimento da população. Tenho estimulado meus funcionários a irem ao Museu do Amanhã, que é a coisa mais linda, e dá aos filhos a oportunidade de ver aquilo tudo de graça.

A programação cultural do Centro é riquíssima e acessível a todos. Vejo a alegria dos funcionários. Vejo como é transformador sugerir um programa a um funcionário ou uma funcionária que mora em comunidade. Dizem que os filhos ficaram encantados. Acabam voltando com a família em diversos fins de semana. Isso inspira as pessoas.

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